Devemos nos preocupar com a presença de arsênio no pescado? – Pt. 01
Na primeira parte deste artigo especial, entenda as diferenças entre formas de arsênio e quando a presença dele no pescado pode preocupar
Alex Augusto Gonçalves - 16 de setembro de 2025
Recentemente, têm circulado nas redes sociais e na mídia (jornais) informações que apontam preocupações quanto aos níveis de arsênio detectados em determinadas espécies de pescado, tais como cação-azul, cação-viola, raias, além de macroalgas e ostras. Essas notícias têm gerado apreensão sobre os possíveis riscos à saúde dos consumidores associados ao consumo desses produtos.
Diante disso, surge a pergunta: devemos nos preocupar com a presença de arsênio no pescado?
A resposta é: depende. É fundamental saber se estamos nos referindo ao arsênio total, ao arsênio orgânico (de baixa toxicidade) ou ao arsênio inorgânico (de alta toxicidade), uma vez que o pescado (peixes, moluscos, crustáceos e até as algas) representa a maior fonte de exposição ao arsênio (As) para diversas populações ao redor do mundo. Essa distinção é essencial para avaliar corretamente os riscos à saúde, pois até o momento, as avaliações de exposição humana e toxicologia têm se concentrado no As inorgânico, enquanto o As orgânico tem sido geralmente considerado não tóxico.
Fontes naturais e antrópicas de arsênio
O arsênio é um metalóide presente naturalmente na crosta terrestre, podendo ser mobilizado a partir de depósitos minerais por meio de processos geológicos e climáticos, como o intemperismo, a erosão e a atividade vulcânica. Além das fontes naturais, sua presença no ambiente também pode decorrer de atividades antrópicas, especialmente em função de seu uso em diversos setores industriais, como na agricultura, por meio da aplicação de herbicidas, fungicidas e pesticidas.
Comportamento no ambiente aquático
No ambiente aquático, o grau de toxicidade do arsênio depende da sua forma, por exemplo, inorgânica ou orgânica, e do estado de oxidação. Os efeitos tóxicos e outros efeitos dos compostos arsenicais sobre a vida aquática são significativamente modificados por diversos fatores biológicos e abióticos, incluindo a temperatura da água, pH, potencial redox (Eh), teor de matéria orgânica, concentração de fosfato, sólidos suspensos e presença de outras substâncias e agentes tóxicos, além da especiação do arsênio e do tempo de exposição. O arsênio absorvido pela vida aquática e acumulado no organismo dos seres vivos ocorre principalmente em diversas formas orgânicas, sendo que apenas uma pequena porcentagem é acumulada na forma inorgânica, que é mais tóxica. A acumulação das diferentes formas de arsênio depende, em grande parte, da espécie e do tecido analisados. Os padrões de acumulação e distribuição de metais tóxicos nos tecidos de peixes dependem das taxas de absorção e eliminação, podendo causar diversos defeitos fisiológicos e até mortalidade quando a acumulação atinge níveis substancialmente elevados. A bioacumulação de arsênio é sensível ao ambiente em que ocorre (marinho, estuarino ou de água doce); pode variar entre diferentes espécies de peixes; ser influenciada pelo nível trófico nas cadeias alimentares aquáticas; e não ser constante em todas as concentrações de exposição, vias e formas de absorção.
Especiação do arsênio e desafios analíticos
O arsênio existe sob diversas formas químicas que diferem em seu comportamento físico-químico, toxicidade, biodisponibilidade e biotransformação. A determinação dessas formas é um aspecto importante nas áreas de química ambiental, clínica e de alimentos. No entanto, a diferenciação constitui uma tarefa analítica bastante complexa. Diversos procedimentos de especiação têm sido estudados, envolvendo técnicas eletroquímicas, cromatográficas, espectrométricas e técnicas acopladas. A estabilidade das formas de arsênio e cada uma das etapas analíticas dos métodos de especiação (coleta, armazenamento, preservação e extração de amostras) devem ser avaliadas de forma detalhada. A análise de especiação do arsênio é de grande importância para a saúde humana, porém apresenta desafios significativos para os analistas e continua sendo uma área complexa para a química analítica. A caracterização completa das formas de arsênio é essencial devido aos seus diferentes efeitos toxicológicos. A natureza química desses compostos, especialmente sua tendência a alterar estados de valência ou formas químicas em uma ampla faixa de condições de pH e potencial redox, dificulta a avaliação de seu comportamento e mobilidade no ambiente. Há um grande número de estudos sobre a especiação de arsênio em diversas matrizes, incluindo uma variedade de técnicas de extração. Porém, não é possível definir um procedimento de extração universal que seja adequado para todas as espécies e matrizes diferentes. O método mais utilizado para a especiação de arsênio envolve a separação por cromatografia líquida seguida pela detecção elementar. A escolha do método mais apropriado para a determinação das formas de arsênio é de grande importância para a obtenção de resultados confiáveis e precisos.
Limitações das análises baseadas em arsênio total
A maioria dos dados relatados sobre arsênio em alimentos descreve o teor de arsênio total, ou seja, a soma de todas as formas de arsênio. As análises de arsênio total que fornecem esses dados podem ser realizadas com relativa facilidade em laboratórios analíticos equipados para determinações de elementos-traço. Já as análises que fornecem informações sobre as formas de arsênio são muito mais difíceis de realizar, e relativamente poucos laboratórios têm capacidade para fornecer esses dados. No entanto, tais informações estão se tornando cada vez mais importantes, pois diferentes alimentos podem conter diferentes formas de arsênio que possuem toxicidades muito distintas.
Formas predominantes de arsênio em alimentos e pescado
O arsênio está presente como contaminante natural em diversos alimentos, ocorrendo tanto na forma orgânica — como a arsenocolina, arsenobetaína, arsenossacarídeos, arsenolipídios, geralmente consideradas de baixa toxicidade — quanto na forma inorgânica, esta última significativamente mais tóxica e motivo de maior preocupação. As formas inorgânicas de arsênio são reconhecidas por sua toxicidade cumulativa, com efeitos adversos graves à saúde humana, incluindo propriedades carcinogênicas, além de apresentarem elevada biodisponibilidade. A principal via de exposição humana ao arsênio é a ingestão de alimentos, especialmente os de origem aquática, os quais podem acumular concentrações relevantes desse elemento.
A arsenobetaína (AsB) é a principal forma de arsênio presente em peixes marinhos e na maioria das outras espécies de pescado. Mais recentemente, demonstrou-se que a arsenobetaína também ocorre em algas marinhas; entretanto, as concentrações são geralmente baixas, o que dificulta sua medição na presença de arsenossacarídeos, as espécies dominantes de arsênio em algas. A arsenobetaína ainda não foi detectada na água do mar, embora seja provável que esteja presente em níveis traços. Também há diversos relatos da presença de arsenobetaína em organismos de água doce, ainda que os níveis sejam geralmente baixos (<0,1 mg de arsênio/kg de matéria seca), muito menores do que os encontrados em amostras marinhas. A causa das diferenças nos teores de arsenobetaína entre organismos marinhos e de água doce ainda não está completamente elucidada, embora evidências crescentes indiquem uma possível relação com a salinidade, sugerindo que a arsenobetaína possa atuar como um osmólito absorvido de forma não intencional. Peixes de água doce provenientes da aquicultura podem apresentar concentrações elevadas de arsenobetaína devido ao uso de rações formuladas com ingredientes de origem marinha.
Os arsenossacarídeos (AsS) são geralmente os principais constituintes arsenicais das algas marinhas (tipicamente 2–50 mg de arsênio/kg de matéria seca) e também são encontrados em concentrações significativas em animais que se alimentam de microalgas (por exemplo, mexilhões e ostras; tipicamente 0,5–5 mg/kg de matéria seca).
Já os arsenolipídios (AsL) são os lipídios que contêm arsênio. Embora a presença de compostos de arsênio solúveis em gordura em peixes tenha sido relatada pela primeira vez no final da década de 1960, as estruturas de alguns desses arsenolipídios foram elucidadas apenas recentemente. Em 2008, demonstrou-se que o óleo de fígado de bacalhau contém seis ácidos graxos contendo arsênio, e que o óleo do peixe capelim contém três hidrocarbonetos contendo arsênio. Muitos outros compostos de arsênio solúveis em gordura estavam presentes nessas duas amostras, mas suas estruturas ainda não são conhecidas. É muito provável que os arsenolipídios também ocorram em muitas outras espécies de peixes (particularmente em peixes gordurosos, como sardinha, cavala e atum), bem como em outros alimentos, embora dados quantitativos ainda não tenham sido reportados. Nos óleos de peixe examinados até agora, o teor de arsenolipídios varia entre 4 e 12 mg de arsênio/kg de óleo, o que pode indicar que o teor de arsenolipídios em peixes gordurosos comestíveis (filés de peixe) seja geralmente um pouco inferior a 2 mg de arsênio/kg de matéria seca.
Créditos imagens: Canva
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- Oceanólogo (FURG), com especialização e mestrado em Engenharia de Alimentos (FURG), doutorado em Engenharia de Produção (UFRGS) e pós doutorado em Tecnologia de Ozônio (Dalhousie University, Canadá). Pesquisador (bolsista produtividade CNPq nível 2), Professor associado IV (Tecnologia do Pescado) no curso de Engenharia de Pesca (UFERSA), e Consultor internacional da FAO. Desde 2019, está cedido ao MAPA, onde ocupou diferentes cargos. Atualmente, exerce a função de coordenador da Ouvidoria e ouvidor substituto no MAPA. É autor de livro Tecnologia do Pescado: ciência, tecnologia, inovação e legislação (premiado no Jabuti 2012), e do livro Inspeção e Controle de Qualidade na Indústria do Pescado (previsto para 2025).


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